O controlo sobre a vida da mulher. A obsessão com mensagens e olhares. Ofensas. Estes são alguns dos sinais que a devem alarmar.
“Todos os dias voltar a casa é uma incógnita. Como será que ele vai estar hoje? Será que me vai abraçar como eu tanto desejo ou começar logo uma discussão porque me atrasei um bocadinho? Vai discutir de certeza. E vai logo pedir-me que diga tudo o que fiz hoje, minuto a minuto, para examinar todo o meu dia, apesar de me ter ligado umas 15 vezes e ter mandado umas 30 mensagens. Ele sempre foi contra eu trabalhar. Quantas vezes aparece lá à porta só para me controlar. Se eu tivesse saído mais cedo do trabalho e já estivesse em casa quando ele chegasse, com o jantar pronto e as coisas como ele gosta, talvez ficasse contente. Sim porque ele gosta sempre de tudo impecável e eu esforço-me, esforço-me bastante, mas se calhar tenho de empenhar-me mais. Mas às vezes fica difícil, porque quando ele se irrita bate-me com muita força e eu fico debilitada, sem as mesmas capacidades.”
Este tema é bastante sensível e recorrente nas notícias diárias dos meios de comunicação em Portugal e no mundo. Mas na maioria dos casos, estes só ganham voz quando se chegou ao limite, sendo este limite por diversas vezes a morte da vítima. A violência doméstica é uma das dores mais solitárias que existe. Vive, cresce e prolifera na escuridão, no silêncio e longe dos olhares dos outros. Acontece até mesmo à frente das pessoas mais atentas, sem que estas percebam que algo se passa.
“Eu pensava que era normal a maneira como ele me tratava. Que todos aqueles ciúmes, eram apenas a forma que ele tinha de me demonstrar o imenso amor dele por mim.”
Muitas vezes as vítimas estão em processo de negação da verdade, da sua realidade, daquilo que vivem todos os dias, aceitando mesmo as agressões como algo menor.
“Mas eu amo-o, não posso viver sem ele!”
Há a ilusão de dependência em relação ao agressor e acreditam que o imenso amor que sentem por ele o vai mudar, e vão viver o amor estável que tanto procuram e idealizam. Costumo mesmo dizer que o “happily ever after”, que tantas vezes ouvimos nas histórias de encantar que nos foram lidas na infância, nos passou um modelo romantizado das relações e que inúmeras vezes não é tido de forma recíproca.
“Tenho tanta vergonha de contar, nunca falei com ninguém sobre isto. Eu, uma mulher com uma educação exemplar, curso superior e várias formações. Toda a gente vai achar-me ridícula, a minha família, então, nem quero imaginar. Vão dizer que se eu aguentei foi porque gostava que ele me batesse. Não, eu não gostava, quem gosta?“
Desta forma, existem dois quadros recorrentes: mulheres que apesar de não serem dependentes financeiramente do agressor, o são de forma emocional, ou têm constrangimento com a situação, sonhando sempre com o dia em que ele irá mudar; por outro lado, mulheres que não são de facto independentes e que sem o agressor não sabem como se poderão sustentar, principalmente porque frequentemente têm filhos, o que agrava ainda mais a situação.
“Mais vale aguentar, não tenho como me sustentar. E se ele vem atrás de mim? Tantas vezes ameaçou que me matava, que se eu vou embora aí é que ele me mata mesmo!”
A vítima convence-se mesmo que não tem como sair da situação em que se encontra e acaba por não pedir ajuda. Adiando uma situação, que apenas se irá agravar com o tempo, tanto em intensidade como em periodicidade, podendo mesmo acabar em morte.
“Cheguei a dormir na rua. Uma madrugada quando ele chegou a casa completamente bêbado, expulsou-me com os meus pequeninos. Chamou-me de puta para cima, que nem para a cama servia, e eu fiquei na rua com os meninos. Não tinha para onde ir! Como é que ia explicar isso à minha família?”
É difícil assumir perante todos que são vítimas de maus tratos. Escondem de tal forma, que desculpas como: “fui contra a porta”; “sou mesmo desastrada”; “caí nas escadas”; e outras tantas fruto de uma grande imaginação, multiplicam-se ao mesmo tempo que aumentam as agressões. Mas bastante mais grave que não revelar aos outros aquilo pelo qual estão a passar, é não assumir a si própria a verdade.
“Ele vai mudar. Foi só desta vez. Vinha aborrecido porque teve um problema no trabalho.”
Não, não vai mudar! Não, não foi só desta vez. A taxa de reincidência de violência é superior a 76%, segundo os dados mais recentes (2016) da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, aumentando também de violência e diminuindo o intervalo temporal. Denunciando ainda que é raro haver um abandono da relação por parte da vítima logo na primeira agressão, antes pelo contrário, a desculpabilização que concede ao agressor é constante, protegendo-o mesmo de comentários e injúrias alheias.
“Tínhamos ido a uma gala, estávamos lindos! Eu num vestido comprido preto e ele com um smoking que o fazia parecer um príncipe. Toda a noite o notei tenso, como de costume quando saíamos ou tínhamos um jantar, estava sempre alerta a ver quem olhava para mim. Mas naquela noite passei uma vergonha tão grande. Um amigo passou por mim e cumprimentou-me dando-me um beijinho. Foi o fim do mundo. Discutiu comigo, apertou-me o braço, e desapareceu deixando-me sozinha no meio de toda a gente. Que humilhação! Quando regressou, acusou-me de eu já estar a olhar para esse meu amigo há horas e perguntou-me se o que eu queria era ir para a cama com esse rapaz. Respondi-lhe que apenas o cumprimentei porque ele me disse olá e me deu um beijinho, mas ele não acreditou. A partir desse dia passei a ignorar a maior parte dos meus amigos quando os encontrava, fazia mesmo de conta que não os via, assim ao menos tinha um pouco de paz. Mas nem assim ele parou, havia sempre algum motivo. Deixei de sair. De falar com os meus pais até. Tudo para que eu tivesse uns minutos de paz.”
Neste exemplo, são vários os sinais de alarme desvalorizados pela vítima. A não reação ao seu afastamento da família e amigos em prol de uma “paz momentânea” e de um agradar em nome do amor. Abnegação da sua personalidade e obediência a um comportamento erróneo do agressor. O que invariavelmente acontece é existir um pedido de “desculpa” do agressor, ficando tudo em “lua-de-mel” durante um tempo até voltar a ser agredida.
De notar que a violência doméstica não olha a classe social, raça, religião, cultura ou faixa etária. Acontece nos diversos quadrantes da sociedade.
“Implicava constantemente com o que eu vestia, nunca podia andar mais arranjadinha. Quantas vezes me pediu o telemóvel para ler as minhas conversas no facebook ou no Whats’App. Não sei o que tanto procurava. Acusava-me sempre de ter amantes que eu estaria a esconder nas redes sociais. E quando bebia? Aí então é que estava o caldo entornado, era muito pior.”
Pode-se mesmo constatar no relatório anual de monitorização da DGAI (2015), que cerca de 42% dos acusados por violência doméstica apresenta problemas relacionados com o consumo de álcool.
“Quantas vezes ele me disse que se eu não fosse dele não era de mais ninguém.”
Na violência doméstica, ao contrário do que muitos acreditam, não falamos apenas de agressões físicas, referimo-nos também a ofensas verbais, sentidas como verdadeiras torturas, onde as vítimas são humilhadas, desprezadas, rebaixadas, oprimidas, sem que lhes tenham tocado com um dedo sequer, mas deixando marcas mais profundas que as físicas.
“Começou por me empurrar e depois partiu mesmo para a agressão, foram uma, duas, três, perdi a conta a quantas vezes. Cheguei ao meu limite, não aguento mais.”
Sinais comuns de maus tratos prendem-se com: intimidações, insultos, lesões, traumatismos, que acontecem por tudo e por nada. É um aliviar da tensão do agressor na vítima, quer ela tenha comportamentos que vão de acordo com a sua vontade ou não.
“Cheguei a um ponto que parecia que os papéis se tinham invertido, era a minha filha que me protegia e não eu a ela. Não consegui continuar a sujeitá-la a isso, tinha de exercer o meu papel de mãe.”
Os sinais de alarme soam quando sentem que correm realmente perigo de vida, mas maioritariamente quando o mesmo se estende aos filhos. Conseguem admitir os maus tratos a si próprias mas ao filhos não.
E quem são estes agressores? Porque o fazem? Pessoas descritas na sociedade como sendo encantadoras, aquelas que dão a “camisa pelo amigo”, adoráveis, sempre prontas a ajudar no que for preciso. Só as vítimas conhecem o outro lado do agressor, o da impulsividade, violência e raiva, que aparecem vindas do nada. São indivíduos profundamente inseguros, com baixa auto-estima, intolerantes à frustração, vulneráveis e sem capacidade de assumir os seus erros, culpabilizando as vítimas pelos mesmos. Excessivamente ciumentos e manipuladores, necessitam de exercer domínio sobre quem eles consideram ser mais fraco, para que sintam que têm controlo.
“E agora? O que faço? Vou ficar sozinha? Tenho tanto medo.”
Acredito que desmistificar este tema e tudo que a ele se relaciona, torna o extenso trajeto que ainda há a percorrer nestas questões, um pouco mais curto e claro. Relembro que muitos casos acontecem na nossa frente sem darmos por isso e que as vítimas se sentem invariavelmente sozinhas e sem rumo, considerando mesmo que mais vale ficarem na situação que estão pois não têm mais ninguém.
Como sobreviver a tudo isto? O ódio toma o lugar do amor e o medo de uma nova relação, do voltar a acontecer, é algo muito real que deixa marcas que se não forem tratadas poderão ser para toda a vida. Assim sendo, é importante para a vítima perceber que não teve culpa do que lhe aconteceu, acima de tudo tem de recuperar a sua auto-estima e amor próprio, acreditando que é um dia de cada vez mas que tudo ficará resolvido dentro de si.
Se se identificou com algum destes casos, leia as 5 coisas que deve fazer:
1 – Pare de se culpabilizar e olhe para dentro de si. Existe um “Eu” que merece que mude a sua vida agora;
2 – Respeite-se. Respeite o seu corpo e a sua mente;
3 – Valorize-se. Já pensou em tudo que é capaz?
4 – Diga para si mesmo, chega! Não deixe mais que a violentem. Amar-se é uma prioridade;
5 – Está na hora de agir. Informe-se sobre os meios legais e de apoio que tem do seu lado e procure ajuda.
Numa época que mais que nunca se fala em igualdade de género e que tanto se fez para que de facto isto se vá concretizando cada vez mais, com a crescente aproximação dos direitos entre homens e mulheres na sua realização profissional, como é possível que as mulheres ainda sejam vistas acima de tudo como a cuidadora, quer dos filhos quer do marido/companheiro? E que isto seja enraizado por elas mesmo, colocando de parte o cuidar de si mesma?
As mudanças passam por todos nós, sociedade? Passam. Sobretudo ao nível da prevenção primária, educando para prevenir o futuro. Mas acima de tudo, passa por cada uma das vítimas que sofre em silêncio. Pare, a culpa não é sua! É possível ter uma vida em que não é maltratada, humilhada, insultada e desvalorizada. Não está sozinha!
O caminho a percorrer para se amar a si própria pode ser longo, mas só se faz caminhando passo a passo. Vamos caminhar?
Artigo publicado em MAGG.pt
Violência doméstica. Psicóloga conta histórias reais que mostram como tudo pode começar